Lei 14.651 e o duplo grau de julgamento nas penas de perdimento
Lei 14.651 e o duplo grau de julgamento nas penas de perdimento
Estamos mais próximos dos normativos da OMC?
Por: KBL
07/09/2023
As relações de comércio exterior demandam atenção às normas de diversos órgãos nacionais e internacionais, regulamentações, legislações e tributações. Os procedimentos aduaneiros são de grande complexidade e é extremamente importante que os contribuintes do ramo do comércio exterior sigam as orientações legais. O não cumprimento dessa legislação poderá acarretar diversas punições e um enorme prejuízo para quem opera neste ramo.
Perdimento, conforme classificação da Receita Federal, é uma infração, e seguindo pela etimologia da palavra, ocorre quando o importador perde o direito a mercadoria trazida de fora do país por descumprir com o desembaraço aduaneiro, que é a verificação e conferência das declarações para liberação da mercadoria na alfândega do Brasil.
Quando o processo não é feito de maneira correta e os prazos são descumpridos, o artigo 689 do Regulamento aduaneiro prevê aplicação da pena de perdimento da mercadoria por configurarem dano ao Erário, quando, ocorrerem, dentro outras hipóteses: quando a operação de carga ou já carregada em qualquer veículo, ou dele descarregada ou em descarga, sem ordem, despacho ou licença, por escrito, da autoridade aduaneira, ou sem o cumprimento de outra formalidade essencial estabelecida em texto normativo; oculta, a bordo do veículo ou na zona primária, qualquer que seja o processo utilizado; existente a bordo do veículo, sem registro em manifesto, em documento de efeito equivalente ou em outras declarações; nacional ou nacionalizada, em grande quantidade ou de vultoso valor, encontrada na zona de vigilância aduaneira, em circunstâncias que tornem evidente destinar-se a exportação clandestina; estrangeira ou nacional, na importação ou na exportação, se qualquer documento necessário ao seu embarque ou desembaraço tiver sido falsificado ou adulterado; estrangeira, que apresente característica essencial falsificada ou adulterada, que impeça ou dificulte sua identificação, ainda que a falsificação ou a adulteração não influa no seu tratamento tributário ou cambial; estrangeira, encontrada ao abandono, desacompanhada de prova do pagamento dos tributos aduaneiros; a beneficiar-se de regime de tributação simplificada ou ainda por mercadoria estrangeira, em trânsito no território aduaneiro, quando o veículo terrestre que a conduzir for desviado de sua rota legal, sem motivo justificado, ou ainda, por mercadoria estrangeira ou nacional, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.
No último dia 1º de agosto, o plenário do Senado aprovou o projeto de lei com novas regras para os procedimentos fiscais de apreensão de mercadorias, o famigerado “perdimento”. Em verdade, o projeto tenta compatibilizar a legislação brasileira com as normas da Organização Mundial do Comércio para esse tipo de procedimento, já que até então os processos eram sumários e os contribuintes tinham poucas possibilidades de defesa.
O texto seguiu à sanção presidencial, entrando em vigor em 24 de agosto de 2023, através da Lei 14.651/2023 que alterou o Decreto-Lei 1.455, de 7 de abril de 1976, as Leis 10.833, de 29 de dezembro de 2003, e 14.286, de 29 de dezembro de 2021, para dispor sobre a aplicação e o julgamento da pena de perdimento de mercadoria, veículo e moeda e traz novidades pontuais no regramento do perdimento, aproximando o Brasil aos tratados internacionais dos quais é signatário, cujos textos já preveem a possibilidade de recurso administrativo nos casos de perdimento.
O Código Aduaneiro da União Europeia, por exemplo, já previa, desde 2013, a obrigatoriedade da defesa de segunda instância de toda e qualquer penalidade aplicada em matéria aduaneira. O Código Aduaneiro da Argentina, mesmo datado de 1981, também já atendia aos ditames do contraditório e da ampla defesa.
Entra em vigor então, a mudança mais esperada, já que no processo administrativo de aplicação da pena de perdimento de mercadorias o § 4º do seu art. 27 do Decreto-Lei 1.455/76, dispunha que essa penalidade seria reconhecida em única instância. Aqui, me parece uma melhoria em prol do contraditório e ampla defesa, princípios caros a todo e qualquer processo: o art 27-D da vigente norma estabelece que, na hipótese de decisão de primeira instância desfavorável ao autuado, agora, poderá interpor recurso à segunda instância no prazo de 20 (vinte) dias, contado da data da ciência do autuado, revogando o § 4º.
Entretanto, “salta aos olhos” a possibilidade do órgão autuante escolher a citação por edital do suporto infrator antes mesmo de exaurir as possibilidades de citações pessoal, via postal ou por meio eletrônico. No meu entender, um verdadeiro risco para a defesa do autuado. Isso, porque a citação por edital é espécie de citação ficta e, por isso, excepcional, sendo autorizada somente após o esgotamento dos meios de localização para citação pessoal do réu, nas hipóteses taxativas elencadas no Art. 256 do CPC, sendo este o entendimento dominante nos tribunais pátrios. Afinal, sejamos sinceros, qual cidadão fica a acompanhar citações em editais?
Ademais, de acordo com a Lei 14.651/2023, o ministro da Fazenda ainda precisaria regulamentar o rito administrativo de aplicação e as competências de julgamento da pena que seguirão, o que, de fato, aconteceu no dia 29 de agosto de 2023, com a entrada em vigor da portaria normativa do Ministério da Fazenda 1.005 que criou o Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul), no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, que tem por finalidade julgar impugnações e recursos protocolados em processos que versem sobre as penalidades de perdimento.
Com isso, o julgamento das impugnações e dos recursos referente aos processos administrativos da aplicação da pena de perdimento competirá aos Auditores-Fiscais da Receita Federal em exercício no Cejul, divergindo da compreensão do atual modelo do processo administrativo fiscal federal que envolve a abordagem das instâncias de julgamento, compostas, em primeiro grau, pelas Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ), e, em segundo grau, pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
Não obstante, a supracitada portaria prever hipóteses de impedimento e suspeição de julgadores, possibilidade de proposição de diligência e perícia nos autos, não houve espaço para sustentação oral por parte da defesa, última chance para o advogado expor argumentos fático-probatórios, tentando convencer o colegiado votante da inocência do acusado e esclarecer argumentos pontuais, tendo em vista que as decisões das Câmaras Recursais são definitivas, não sendo cabível pedido de reconsideração nem recurso hierárquico.
Talvez estejamos, de fato, caminhando para uma aproximação com regramentos mais justos e condizentes com a OMC, mas, ainda, distantes da realidade que o operador do direito brasileiro enfrenta…
Fonte: Portal Jota